segunda-feira, 7 de abril de 2014

Para não dizer que não falei de ideologia...

Numa das turmas, na aula de 26 de março, ingressamos numa animada discussão sobre os mecanismos ideológicos que garantem a continuidade do capitalismo apesar das tensões inerentes a esse modo de organizar a economia. Ideologia é um conceito-chave, mas também errático. Chave, porque tem nos seus termos a capacidade de identificar formas de aceitação daquilo que parece não ser do interesse das pessoas -- disse em aula que a ideologia determina aquilo que vemos como o existente, o possível e o desejável. Errático, porque tem nos nossos termos a capacidade de identificar tudo aquilo que não sabemos analisar. Algo acontece que foge da teoria, como uma atitude de um grupo que vai contra os interesses materiais do próprio grupo que age, digo que tudo se deu por ideologia. Ou seja, digo algo para ocultar que não sei como expressar aquilo que está acontecendo. É o que chamamos de conceito passe-partout, aquele que mobilizamos para evitar lacunas na argumentação, mas que no fim das contas pouco acrescentam.

Mas há teorias sofisticadas de ideologia. Recomendo especialmente o trabalho do sociólogo sueco Göran Therborn, um autor sofisticado, do qual podem ler um texto aqui (o primeiro capítulo de seu A ideologia do poder ou o poder da ideologia, um livro muito importante, por sinal). Influenciado pelo pensamento de Louis Althusser, A ideologia do poder… é um marco no debate sobre ideologia. Copio abaixo um pequeno ensaio que escrevi na ocasião de uma vinda desse autor ao Brasil, em 2012:

A noção de ideologia é fundamental na tradição marxista. Teoricamente, é um dos principais mecanismos da teoria de reprodução social, estabelecendo como sistemas de relações sociais opressoras se sustentam de maneira estável. Marxistas desenvolveram teorias da ideologia para responder questões como: por que os trabalhadores não se revoltam continuamente contra a exploração e a dominação no capitalismo? A revolta permanente de trabalhadores levaria provavelmente ao colapso do capitalismo, incapaz de manter-se estável. Pode-se tomar essa questão específica por diferentes ângulos — os problemas da ação coletiva, as contingências históricas, as dinâmicas dos compromissos de classe, a ameaça do desemprego –, mas a ideologia permanece um elemento-chave para qualquer resposta. Esta serve para explicar por que os trabalhadores aceitam sua exploração; não é suficiente dizer que os trabalhadores são sempre coagidos a trabalhar.

Na teoria clássica, remontando a Marx e Engels, define-se ideologia como falsa consciência. Por mais que Marx nunca tenha usado a expressão exata, empregada por Engels numa carta de 1893, a ideia de falsa consciência é consistente com sua análise de mistificação em A ideologia alemã e fetichismo da mercadoria em O capital. Lenin também fundamentou sua análise de ideologia na ideia de falsa consciência; apesar de apresentar modificações importantes em relação ao argumento clássico original, Lukács desenvolveu sua teoria de ideologia nos parâmetros da noção de falsa consciência. De modo geral, nessa visão a ideologia é um conjunto de mecanismos e processos que impede os explorados e oprimidos de entender e reconhecer sua exploração e opressão. Uma variação dessa definição, importante no debate dos anos 1970, é que não só os explorados e oprimidos não entendem e reconhecem sua exploração e opressão (função negativa da ideologia, de ocultar e obscurecer), mas as justificam e perpetuam, assim pressupondo um envolvimento ativo e criativo dos explorados e oprimidos (função positiva da ideologia, de fortalecer e alimentar o sistema de exploração e opressão). Não cabe nesse ensaio curto esmiuçar a distinção entre as duas funções de ideologia como falsa consciência.

Marx e seguidores apontam algumas dimensões da “falsidade” da consciência, geralmente atreladas a dinâmicas psicológicas. Primeiramente, corresponde à falta de compreensão das pessoas em relação às forças fundamentais que as impelem a pensar e agir, ou seja, falsa consciência corresponde a ignorar influências causais. Em segundo, diz respeito a pensamentos ilusórios: o que as pessoas imaginam e lhes parece real não o é. Em terceiro, relaciona-se com o modo como as pessoas interpretam os motivos e fontes de seus pensamentos com idealismo; como toda ação é mediada pelo pensamento, aparece-lhes como se fosse fundamentada no pensamento. No capitalismo, assume-se então que os trabalhadores representam falsamente as relações sociais dominantes, isto é, o que veem é uma representação distorcida da realidade social. Vale notar que representações distorcidas não são alucinações, têm base em experiências vividas. Exemplo dessas dimensões da falsidade em operação é o fetichismo da mercadoria, analisado por Marx no fim do primeiro capítulo do primeiro volume de O capital. Nesse trecho, Marx afirma que as mercadorias parecem ter um poder próprio, autônomo em relação ao produtor. Assim, por mais que as mercadorias adquiram valor por meio do trabalho social, como diz Marx, parecem ter valor no momento de sua troca, fora da esfera da produção.

Na introdução de A ideologia do poder…, Therborn rompe com a teoria clássica de ideologia. Diz, nas páginas 4 e 5 (tradução livre): “Rompo [com essa visão de ideologia] porque está vinculada a uma visão das motivações humanas que me parece insustentável. [...] Fundamentalmente, tomam a ‘superestrutura’ das formas de consciência como epifenômenos. O comportamento humano estava determinado por ‘interesses’, interesses de classe. Os tipos de consciência ou correspondiam a esses ‘interesses’, como consciência ‘verdadeira’, ou não correspondiam, e nesse caso se tornavam ilusões e por isso ineficazes (pelo menos no longo prazo). Essa visão tem seu exemplo em como Marx trata a ideologia burguesa e proletária; está na crença arraigada que a classe trabalhadora viria a desenvolver uma consciência verdadeira de seus interesses de classe, apesar das aparências distorcidas nas relações capitalistas de produção, apesar da ‘reificação’, ‘fetichismo da mercadoria’ e a exploração ‘assalariada’”. A crítica de Therborn sugere que a teoria clássica pressupõe uma realidade verdadeira, cognoscível por meio da ciência materialista histórica, o que é inaceitável do ponto de vista materialista histórico. Apesar de pouco materialista, a pressuposição teve implicações profundas na tradição marxista; basta pensar em alguns textos de Lenin em que caracteriza o quadro político como a pessoa a desenvolver uma ideologia científica e, assim, orientar as lutas dos trabalhadores, presos a suas mistificações, contra as supostas bases reais e verdadeiras de sua opressão e exploração. Outra deficiência da teoria clássica é que se fundamenta numa explicação funcionalista, ou seja, essa teoria afirma que a ideologia dominante é aquela que estabiliza da melhor forma possível o sistema de relações dominante. Para fugir do raciocínio funcionalista, é preciso propor em mecanismos que alimentem a falsa consciência que sejam funcionais para a estabilidade do capitalismo. Não parece haver tais mecanismos e, se houver, não há teoria dos mecanismos que previnem a mistificação.

Therborn oferece uma definição original de ideologia, fundamentada na interpelação dos seres humanos como sujeitos, em referência à noção cunhada por Althusser: “a operação da ideologia na vida humana envolve a constituição e a padronização de como os seres humanos vivem suas vidas como iniciadores conscientes e reflexivos de atos dentro de um mundo estruturado e com sentido” (p. 15). A constituição e a padronização se referem à interpelação, um processo duplo segundo Therborn que sujeita e qualifica as subjetividades. A sujeição e a qualificação não estão necessariamente em correspondência — uma das diferenças centrais entre sua teoria e a de Althusser — e se definem, respectivamente, como a formação da individualidade e a inserção em relações sociais. As ideologias sujeitam e qualificam as pessoas ao dizer-lhes e fazer-lhes reconhecer o que existe, o que é bom e o que é possível. Toda ideologia resulta de práticas discursivas e não discursivas sistemáticas de afirmação e sanção: quando alguém age de acordo com as normas enunciadas por tal ideologia, espera chegar a um resultado; quando não age de acordo com as normas, é punido.

Na visão de Therborn, diferentes ideologias coexistem e se emaranham. “A determinação da relação entre dadas ideologias é de dominação e subordinação, crescimento relativo, reforço, marginalização e declínio. A matriz material [de afirmação e sanção das ideologias] não opera como um ménage à trois envolvendo os homens, a ideologia e a realidade, mas como um determinante na competição e choque entre diferentes ideologias, entre diferentes interpretações da realidade ou diferentes interpelações em relação ao que existe, o que é bom e o que é possível” (p. 34). Torna-se portanto central para o materialismo histórico entender as bases da preponderância de uma ideologia sobre outras, considerando que as ideologias existem como formas históricas, em articulação com outras ideologias, classes e ideologias de classe (ao especificar ideologias de classe como parte de um leque de várias ideologias, Therborn adota uma noção abrangente de ideologia, que abarca subjetividades que não são fundamentadas em classes).

A teoria relacional de Therborn oferece então uma visão própria da geração de ideologias e de transformação social. Num processo histórico, ao mesmo tempo de continuidade, já que toda nova ideologia se funda sobre uma ideologia superada, e discontinuidade, já que em mudanças fundamentais quebra-se a totalidade social, a transformação social depende de um ou mais desses fatores: mudanças estruturais no modo de produção, a produção de novas matrizes de sanção e qualificação a partir da luta de classes e contradições sem solução entre interpelações diferentes. No livro, Therborn oferece exemplos desses processos históricos, ao analisar a formação e reprodução ideológica no feudalismo e capitalismo — cada qual com componentes de sanção e qualificação próprios e em interação –, que não abordo aqui.

Therborn apresenta um quadro absolutamente original de ideologia, fora da tradição clássica, presa a uma noção quase autoritária de verdade, e busca determinantes institucionais para entender a estabilidade de ordens sociais. Sua análise é histórica, dinâmica e relacional — na linha da metodologia marxista, apresentada de modo clássico na Introdução dos Grundrisse, refutando a própria resposta de Marx à questão.

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